domingo, 17 de junho de 2012

Não estava lá, mas posso imaginar




“Não estava lá, mas posso imaginar”

A imagem de crianças com suas canecas de ferro fundido nas mãos, implorando por um pouco de leite, ou migalhas de pão, não me saem da cabeça. São imagens forjadas por minha mente, eu sei, pois eu nunca presenciei tais fatos. Auschwitz-Birkenau, este é seu nome, e se, mesmo sem conhecê-la, consigo sentir o terror invadir-me ao simples som de seu nome, posso imaginar o terror que habitava os homens e mulheres que para lá foram levados.


Crianças que num dia brincavam com seus animais de estimação, faziam suas refeições, aconchegavam-se no colo de suas mães e lambiam o bigodinho deixado pelo leite morno que tomavam, no outro se viam desamparadas, famintas, carentes, absolutamente sós num lugar onde o único conforto imaginável seria a esperança de um dia adentrarem os portões do céu e descansarem nos braços de seu Deus.

Quem afagaria seus cabelos quando tivessem um pesadelo noturno? Quem daria aquele beijinho quando caíssem e de leve, esfolassem os joelhos? Quem os protegeria dos monstros que existem debaixo de suas camas?  Quanta dor foi causada a essas crianças. É nessa hora que eu me desespero com o ser humano. É nessa hora que não consigo conter a taquicardia e as lágrimas que brotam de meus olhos. Homens animais que tratam suas crianças como lixo, como descartáveis, não se dão conta de que uma espécie que não pode proteger seus filhotes, que não sente a extrema necessidade de dar carinho a eles, não merecem permanecer vivos.

O que dizer das mães, que pela força foram arrancadas de suas crias, vendo-os serem carregados para longe do lar, para a morte certa? Quem pode sentir uma fração da dor de um pai que ao observar a partida de seu filho, para sei lá onde, sente-se o mais inútil dos seres. Sem forças para lutar o que pode fazer é apenas chorar. Não estive lá, mas posso imaginar. A estupidez de um austríaco mostrou o quão insano pode ser o homem.

As mulheres chegavam aflitas dos comboios de trens para Auschwitz, Sobibór, Treblinka, Majdanec, Belzec, desesperadas por um pedaço de pão para seus filhos famintos. Imagine viajar por dois dias, 170 pessoas espremidas em um único vagão. E quando chegavam eram rapidamente selecionadas pelos médicos da SS. Entre as da esquerda ficavam as que serviriam no regime de escravidão nos campos de concentração; as da direita, juntamente com crianças,  idosos e deficientes, iam para as câmaras de gás. Carregando suas malinhas, muitas vezes após mais de um dia sem comer, sedentas e com frio, as crianças perguntavam: “mamãe, estou com fome, onde vamos?”. Provavelmente as mães não sabiam o que responder. Algumas, creio eu, num esforço descomunal para consolá-las, diziam: “Vamos tomar banho e depois jantar.” Quem conhece a história sabe que este banho seria o seu último, e refeições certamente não precisariam mais, pois os chuveiros eram adaptados para sair, não água, mas sim um gás letal.

Eles não gritavam, nem choravam, pais e filhos judeus, ciganos, negros, ou doentes mentais, tiravam as roupas, reuniam- se em circos familiares, beijavam- se e despediam-se uns dos outros, esperando por um sinal  dos homens maus da  SS que ficavam perto da vala com chicotes nas mãos. Quantas vezes me imaginei naquele cenário? Pensando e repensando qual seriai a minha reação? Será que eu imploraria por clemência? Será que me agigantaria diante dos soldados e morreria lutando por minha família? Talvez sim. Ou talvez eu permanecesse parado, como um covarde, contemplando a máquina de matar de Hitler em pleno funcionamento. Não ouviriam de mim nenhum pedido de clemência diante do pelotão de fuzilamento... talvez.

Numa dessas divagações, uma cena se materializou em minha cabeça: “Auschwitz II estava silenciosa. Podia sentir o frio cortante bater em meu rosto e os pelos de meu corpo se arrepiarem. Uma fila se estendia pelo campo, era chegada a hora, mais alguns receberam a permissão para partir. Presenciei uma família de seis pessoas, um homem e uma mulher de aproximadamente 40 anos, com duas filhas de 15 e 14 anos, dois meninos, um de 7 e outro de 5 anos apenas... a mãe abraçava o mais novo. O homem olhava sua esposa com lágrimas nos olhos. Depois o pai segurou a mão do menino de 7 anos e falou com ele ternamente, não pude ouvir, mas vi uma lágrima rolar no rosto da criança e logo depois ser contida pelo dedo polegar do pai. O menino lutava para contê-las. 

Uma série de tiros então rompeu o silêncio. De onde estava não conseguia ter uma visão clara, então dei dois passos à frente e olhei por sobre o ombro de um soldado da SS. A cena me aterrorizou. Vi os corpos das crianças se contorcendo, e os de seus pais, imóvel. Corações que até um instante pulsavam, crianças que outrora sorriam e brincavam, agora jaziam em cima de uma pilha de outros corpos que morreram antes deles.

Sempre fico abalado com esses pensamentos. Chego à triste conclusão de que não houve geração que não produzisse insanidades, não houve povo que não formasse mentes estúpidas, mas nos dias de Adolf Hitler nossa espécie foi às raias da loucura. Crianças e adultos tirados de seus lares, vidas interrompidas pelo desejo megalomaníaco de um só homem, que com extrema inteligência manipulou as mentes de uma sociedade tida como a mais culta de todas. 

Onde estavam os grandes filósofos, que não ouviram os gemidos inexprimíveis de crianças e adultos, de negros e judeus, ciganos e poloneses? Eles também se calaram! Alguns até aderiram ao pensamento de Hitler e colaboraram com a tentativa de “limpeza étnica”. Outros comentavam com orgulho que os campos de concentração era uma industria de massacre sem falhas. Desde a seleção dos que chegavam, à eliminação dos cadáveres até ao aproveitamento de seus pertences e restos mortais.
Alguns vêm esses relatos apenas como estatísticas, outros dizem nunca ter acontecido. São os filhos do cartesianismo, onde nada escapa da frieza dos números, de dados estatísticos. Notícias de terremotos que matam milhares e deixa milhões sem lar, chacinas, Tsunamis, tudo não passa de números para alguns. Para outros (poucos eu sei), notícias assim chocam, comovem e os fazem repensar seus conceitos. Trazendo uma verdade implícita em seus sentimentos: “Quando uma sociedade não conhece a fundo sua história, corre o risco de cometer os mesmos erros, talvez até maiores”.

Não estivemos lá, mas podemos imaginar.

Edson Moura

3 comentários:

  1. BRAVO, Grande Noreda!!!


    A sua narrativa verídica-imaginária me fez viajar aos campos de concentrações.

    Eu não estava lá, mas seu texto sensibilizou-me,a ponto de entristecer-me profundamente com o ser humano, neste dia triste de inverno que se inicia aqui em meu torrão.


    Abraços

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  2. Oi Noreda

    Caramba parecia que estávamos todos lá! O seu artigo colocou todas as pessoas diante daquele desastre da humanidade. Quanta estupidez! Até quando?

    abç

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  3. Bela narrativa "bração" (EDSON), mas que pena mesmo que para o ser humano sentir um minimo de "dó" do outro, ele precise imaginar vivendo na situação do outro...detalhe: quando o ser humano imagina vivendo na situação do outro, quem esta "lá" não é outro, mas ele, ou seja, não existe "outro", o que existe é apenas "nós".

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